“Meu mundo
caiu...”, não havia mais nada no que pensar. A desgraça se abateu de vez sobre
a pobre vida de En’hain. A cena havia ficado marcada para sempre em sua
memória, aquele fogo que ardia e queimava, não podia ser apagado. As
salamandras ficaram furiosas com o roubo de sua jóia tão preciosa, a lágrima do
sol. Normalmente elas podem até ser temperamentais e soltar fagulhas de raiva,
mas sem a jóia elas mostrariam ao mundo sua verdadeira face, uma face cheia de
queimaduras profundas e sentimentos amargurados. Ninguém odeia mais os seres
humanos do que os filhos do sol. Há tempos eles têm aturado os seres humanos,
ignorantes e cegos, utilizarem suas energias para a desgraça, para atos de
torturas indescritíveis, para os atos mais selvagens que se possa imaginar.
Eles queriam um basta. Inevitavelmente, o primeiro alvo que os seres do plano
transversal poderiam encontrar no plano físico era a pequena vila dos gatos. A
magia antiga que protege a vila, a parede de silêncio, era algo que impediria a
saída deles pelo poço profundo. O jeito era apelar para o guardião que nunca
está presente...
Para chamar
sua atenção, as salamandras fizeram o que tinham que fazer, o que sabem fazer
de melhor, queimar. Elas não precisaram mais do que seus milhões de milhares de
pequenos soldados, as fagulhas. Aquilo era mais que o suficiente para chamar a
atenção de um Gunshin, título dado aos seres capazes de destroçar exércitos
sozinhos, pois aquilo que eles atingiram era o seu bem mais precioso. Porém,
chamaram a atenção do draconiano errado. Infelizmente, o Bar Toca dos Gatos não
era o bastante para chamar a atenção dele, ele tinha lugares maiores e mais
importantes para cuidar em outro planeta. Mas aquilo o era para En’hain, era
tudo que ele tinha, um lugar onde finalmente havia encontrado a paz para
consigo mesmo, um lugar onde nada importava. Ter uma vida miserável muda muito
a maneira de pensar das pessoas, deixa os sentimentos a flor da pele, você
passa a considerar coisas que, se já estivessem lá, você não daria valor, ao
menos não tanto valor quando não as tem. A Toca dos Gatos estava em chamas, se
desfazendo em carvão e fumaça, com todo mundo lá dentro. Nada poderia evitar
aquela desgraça senão os reis das salamandras ou o Gunshin, que possui poderes
misteriosos e capazes de superar a influencia dos reis elementais sobre seus
soldados. Nada mais...
En’hain se
perguntava:
–Por quê?
Porque você nunca está aqui? Porque ao invés de proteger aquilo que mais amo e
preciso, você está pensando em mim sem nunca estar presente?
Aquilo era
demais para o pobre coração de En’hain, tão desgraçado por sua existência sem
sentido, sem futuro, sem perspectiva. “Quando você finalmente tem coragem para
ter alguma esperança, nesse momento as maiores desgraças vão se abater sobre
você e arrancá-las com crueldade e requintes demoníacos.”, era tudo que ele
conseguia pensar.
–Eu sabia,
desde o começo eu sabia, isso sempre acontece, sempre acontece. Uma hora vamos
perder tudo, não é? A pessoa que amamos irá morrer, não é? Então pra quê tudo
isso, se todos os sonhos são feitos para serem despedaçados? Sou eternamente
amaldiçoado e mal dito no céu e na terra por ser a desgraça que sou... Porque
insistem em me manter vivo, pensando, odiando, sentindo esse sabor amargo sem
nem ter noção do que realmente é o amor?
Lágrimas
desciam freneticamente de seus olhos, lágrimas de verdade, ele não conseguia se
conter. Seus sentimentos que tanto controlam seus poderes entraram em colapso.
Seus corpos etéreo e físico estavam distorcidos. O que estava dentro queria vir
pra fora, o que estava fora queria ir para dentro, o choque causava
interrupções no processo. Suas escamas que tanto rasgavam sua carne agora
estavam fluídas e quentes, sua pele necrosava ao mesmo tempo em que o metal
líquido era vertido pelos poros. Suas veias também ficaram repletas dos líquido
fumegante. Qualquer um sentiria imensa dor se isso lhe fosse incutido, no
entanto, En’hain permanecia estático, não havia como outra dor no mundo superar
aquela que ele sentia, o sentido de perda, de que o mundo havia caído em
definitivo. Ele sentiu-se tonto, perdeu o equilíbrio e caiu para trás,
tornando-se uma grande poça de metal líquido. Não conseguia se mover, perdera
todo o controle sobre o corpo. Tentou respirar, estava hiperventilando, e
parou, ficou estático novamente. Todas as sensações haviam cessado, seu pulso
estava inerte, sua vida não mais habitava aquele corpo. De resto, seus órgão
internos ficaram boiando no meio da poça de metal líquido...
–En’hain
acorda!!! – Gritou Gurei sacudindo o barman.
–Nyaaa!
Acorda! – Disse Akai preocupado.
–Ahn? O
quê? – Fez En’hain acordando.
–Cara, você
teve outro pesadelo daqueles!
–Nyaaa! Cê
tá bem? – Akai olhava com seus olhinhos preocupados.
–Acho que
estou bem sim... – Disse passando a mão na cabeça.
–O que foi
que aconteceu dessa vez? – Perguntou Gurei.
–Cheguem
mais perto... – Os dois se aproximaram para ouvir e foram fortemente abraçados.
– Eu não quero perder vocês...
–Mas que
porra é essa? – Disse Gurei estranhando toda aquela afeição. – Você bebeu foi?
–Nyaaa?! –
Fez Akai.
–CALA A
BOCA GUREI! Agora nada mais importa, vocês estão aqui, só isso que importa. –
En’hain derramou suas lágrimas de metal, tudo parecia estar normal, era apenas
mais um sonho...
–Café da
manhã! – Disse Lady Neko entrando no quarto, trazendo uma bandeja grande cheia
de docinhos, pãezinhos e café para todo mundo.
–Oba, o
rango chegou! – Se alegrou Gurei.
–E você
En’hain, melhorou? Você passou a noite gemendo de dor e com febre, assustou
todo mundo.
–Estou bem
sim, Lady Neko, obrigado.
–Esse é
meu! – Disse Gurei pegando o pãozinho de Akai.
–Nyaaa! Eu
quero! – Akai ficou tristonho.
–Gurei,
devolva já o pãozinho do menino! – Disse Lady Neko, dando uma de mãezona.
–Tá bom, toma...
En’hain
sorriu, ele não queria contar, a perda de tudo, bem na sua frente, era
aterrador demais para pensar. Ele bloqueou voluntariamente aquilo e fingiu não
se lembrar. Mas ainda assim ficava a questão: “Quando você encontra algo que
procura, algo que procura de verdade, será que o universo vai conspirar para
que você permaneça para sempre com aquilo ou será que é sempre inevitável
perder algo como aquilo que En’hain tinha finalmente encontrado?”. Ele não
sabia, era melhor não pensar naquilo...
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