quinta-feira, 9 de agosto de 2012

Crônicas dos Senhores de Castelo: Fanzine - O Filho do Fim - Capítulo 9


Cidade Baixa



            Naqueles dias, a chuva ácida estava forte, boa parte do material atingido derretia e era drenado no subsolo por grandes máquinas aparentemente imunes a corrosividade, blindadas por algum material vítreo que brilhava com as poucas luzes que ousavam penetrar a escuridão. O barulho delas durante aqueles tempos sombrios não deixava ninguém dormir, sempre girando algo que lembrava uma broca, perfuravam os canos quando ficavam entupidos para que o fluxo do material derretido continuasse a fluir para a grande indústria que a Irmandade Cósmica instalara no planeta que roubara – a Cidade Baixa. Esse lugar era medonho, cheio de prédios atrás de prédios com mais de trezentos metros de altura sem praticamente nenhum espaço entre eles, um lugar literalmente sufocante. Ele parece ser perfeito para abrigar populações, mas não se engane. O que realmente mora lá costuma devorar pessoas...

...

            Pilares e Iksio não encontraram um bom abrigo, ainda separados do resto do grupo, permaneciam vagando pelas áreas ainda não afetadas pela chuva ácida. Iksio era espreitado pelo monstro de lixo e esperava que ele o deixasse em alguma hora, ou que ele mesmo se lembrasse de algo que pudesse ser feito para afastar o animal descomunal. Já Pilares tramitava por entre os entulhos segundo seus instintos, evitando voltar para onde os seres famintos estavam: ‘Aquilo cheira a carne podre!’, pensava ele, ‘Isso porque estou usando filtros de ar!’. De fato, o lugar tinha um quê de enjoativo que fazia o estômago do Senhor de Castelo se remexer:
            – Droga! Por que eu fui dar tudo o que trouxe pra ele! Agora quem está com fome sou eu! – reparando melhor, Pilares percebeu algo interessante a sua frente. – Será possível? Ou eu estou delirando?
            O castelar se aproximou daquele lugar luminoso, que tinha algumas poucas pessoas rindo, vendendo alguma comida e falando sem parar e constatou que era realmente o que pensava:
            – Um circo! – E reparou na palavra que havia dito a si mesmo. – Um circo?
            Um homem estranho, de altura extremamente baixa e membros curtos que não lhe permitiam andar direito, andava ‘rebolando’ e foi falar com Pilares que não entendeu nenhuma palavra do que ele dissera. Ele parecia estar convidando-o para entrar no circo, o que o Senhor de Castelo recusava veemente. Então, saindo de dentro de um pequeno engradado, outro homem, de aparência muito esguia e comprida – devia ter uns três metros de altura e ser mais fino que o braço forte de Pilares – surgiu na frente do castelar. Da mesma forma que o baixinho em forma de bola, ele parecia chamá-lo para dentro do circo, chegando a tocar levemente em sua mão para guiá-lo. Pilares não entendeu nada e, temendo acontecer algo ruim como da primeira vez, jogou uma bomba de fumaça no chão e sumiu. O entretenimento gratuito fez os dois estranhos baterem palmas, ou quase isso, o alto e magro batia bem devagar e o pequeno e roliço batia as mãos várias vezes, sem que elas se encontrassem.
            Pilares com certeza achava aquilo estranho, no meio do escuro aparecer um lugar bizarro como aquele e, tentando se lembrar do rosto dos esquisitos, percebeu que só havia uma expressão em suas faces: um semblante liso com olhos e boca pintadas com alguma tinta que já ficara desbotada pelo tempo. E concluiu:
– Eles não tem rosto!
Pilares ficou por ali, sem querer ser visto por ninguém, como um assaltante, espreitando e reconhecendo a região.

...

            Iksio também acabou por conhecer uma nova parte do planeta. Na última fuga do monstro de lixo, o Senhor de Castelo foi parar nos limites da Cidades Baixa. Não tinha como perceber a imensidão do lugar, pois as nuvens estavam baixas e continuavam espessas. Porém, havia alguma luz para iluminar o breu noturno e decidiu pular a cerca que separava aqueles prédios da zona do lixo:
            – Pelas águas límpidas de Arthúa! Como um senhor distinto como eu, que sempre evita fazer algo errado, está pulando uma cerca?! Iksio, você está me saindo muito arteiro! – o castelar falava consigo mesmo, enquanto continuava andando cidade adentro. – Quando sairmos daqui terei novas aulas de etiqueta com a senhorita Liliana de Tianrr... Ah, Liliana, minha amada e doce donzela Liliana, da alta sociedade urbana de Tianrr, que falta você me faz neste mundo arrepiante! Tu és a luz que ilumina meus esforços! Oh, se olhastes para mim ao menos uma vez! E percebesse que posso ser um homem forte, como um Senhor de Castelo, e ainda assim ser gentil e educado como tanto sonhas. Iksio! Recomponha se! Um homem de etiqueta fina nunca deve ter devaneios como este e demonstrar tamanha fraqueza! Ah... Dane se, não tem ninguém aqui!
            O castelar ouviu algo passar por trás dele, o que o fez sentir seu corpo gelar:
            – É... Bem... – ele tentava recompor-se para demonstrar seus hábitos refinados novamente. – Desculpe-me se pareço rude e louco. Estive correndo e me escondendo de uma fera maligna que me perseguia por onde quer que eu fosse e...
            Iksio levou um susto, quem estava diante dele era sua amada Liliana, vestida da mesma forma com a qual ele se lembrava da última vez em que eles se viram. Um corpete azul lindamente bordado em violeta, uma saia recatada de alta costura com uma renda brilhante, um chapéu diminuto para a cabeça com uma armação metálica que se retorcia delicadamente envolta da cabeça em tons arroxeados; sua face suavemente triangular era branca e aveludada, o nariz e a boca eram menores que as comuns e os olhos, negros como a noite, tinham íris grandes que não deixavam transparecer o branco dos olhos. Seus dois pares de braços, com luvas num tom azul quase branco que iam até o cotovelo completavam a visão do Senhor de Castelo:
            – Desculpe-me, seja lá quem você for, você não pode ser Liliana... – Iksio apontou o dedo na direção da moça e escreveu no ar com a escrita mágica. – “Reconhecimento”!
            Os sentidos do castelar se afloraram novamente e ele pode ver com clareza, a criatura não tinha forma certa, era um construto que mudava de forma e que se movimentou enquanto Iksio o olhava através de outros espectros luminosos. Retornando do estado de transe, o Senhor de Castelo se deparou com algo mais desconcertante, a criatura artificial assumira uma forma um tanto peculiar:
            – Pelas Cascatas da Purificação! Sou eu... de cuecas!
...

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