Devil’s Drink 25 –
Ponto de Ônibus
Numa noite
chuvosa, o jovem Samuel chegou ao ponto de ônibus depois da faculdade.
Sentou-se ali embaixo e começou a pensar na vida, nas repetidas vezes em que
esteve nesse ponto após ter estudado tanto. Colocou os fones de ouvidos para
escutar música e relaxou. Sempre tinha um homem alto e engravatado que aparecia
naquele mesmo horário, vindo provavelmente do escritório em que trabalha. Já
era costume de Samuel ficar observando aquele sujeito que ficava esperando o ônibus
quase dormindo de tanto cansaço. Eles tomam ônibus diferentes e nunca
conversaram, mas é sempre a mesma repetição, o estudante chega e em seguida o
engravatado. Naquela noite chuvosa não foi diferente e Samuel logo avistou
aquele homem.
O estudante
viu aquele trabalhador correndo na chuva, se molhando inteiro e achou graça
daquilo. Por fim, depois que aquele homem tentou secar o pouco que podia,
Samuel acabou sorrindo pra ele. O senhor achou estranho e encarou aquilo com
maldade:
– Algum
problema? – disse com ar austero.
–
Desculpe... – Samuel tirou os fones de ouvido. – O que disse?
– Algum
problema moleque? – seu ar de cansaço devia estar estressando-o.
– ...! –
Samuel recuou, engoliu a seco e continuou. – Porque diz isso senhor, o que lhe
fiz?
– Não me
venha com insinuações! Bem vi que estava rindo de mim! Confesse! – o sujeito
estava bravo, deixando Samuel com medo.
– Eu... Eu
só...
– Vamos,
diga! Que graça tem em ficar rindo de mim só porque a chuva me pegou sem
guarda-chuva!
– Eu só
queria ser gentil... – o homem ainda estava pulsante de raiva. – Nos
encontramos tantas vezes neste mesmo lugar, neste mesmo horário, sem nunca nos
falarmos... Eu só queria dizer oi...
– Hum... –
o homem se acalmou, vendo que o jovem estava constrangido, quase chorando. – Me
desculpe, eu... Eu ando muito estressado com o trabalho...
– Não tem
problema... Ninguém liga pra mim mesmo...
– Como
assim? Aconteceu alguma coisa com você? – o sujeito queria se redimir por ser
tão rude.
Samuel
olhou para baixo e sorriu de entremeio, acabando por falar com o estranho:
– Ninguém
me nota... Ninguém sabe pelo que eu passo... Ninguém me entende...
– Problemas
na faculdade?
– Como sabe
que eu faço faculdade?
– Errr...
Bem, eu também notei que nos encontramos aqui sempre no mesmo horário. Você
estuda na faculdade no fim da rua, não é? Já te vi levando algum projeto com o
logo de lá. Estou certo?
– Sim... –
Samuel sorriu. – Os estudos não são fáceis, tenho estudado muito nos últimos meses,
estou quase me formando...
– Que bom!
– O sujeito sorriu, tentando alegrar o jovem rapaz. – E o que você estuda?
–
Arquitetura e urbanismo... Mas não é disso que me refiro...
– Então são
problemas com a namorada? Nessa idade é comum não ter tempo pra ficar com a sua
garota...
– Talvez,
mas também não é isso...
– Então,
deve ser a sua família? Eles te ignoram e não correspondem a suas expectativas,
estou certo?
– Não...
Eles fazem o que podem e não espero nada deles... – Samuel olhava para o outro
lado, tentando esconder a vergonha.
– Então o
que é? Seus amigos não te ajudam com seus problemas?
– Está aí
uma boa questão... Não tenho amigos pra esses casos, resolver minhas dúvidas
não é fácil. Acho que me sinto sozinho afinal...
O
trabalhador não ouviu as últimas palavras de Samuel, estava com tanto sono que
acabou dormindo sentado. Como qualquer um que dorme no lugar errado, ele acabou
pendendo a cabeça para o lado que por fim desceu justamente em cima do colo de
Samuel. O rapaz voltou a enrubescer. Nunca ninguém tinha dormido assim na sua
frente. Ele não sabia o que fazer, via os poucos carros passarem pelos pingos
de chuva sem se mover, pois podia incomodar o senhor engravatado. Samuel o via
dormindo em plena paz, deveria realmente estar precisando dormir. Seu ônibus
passou direto, ele não deu sinal, se aquele homem continuasse dormindo e
estivesse sozinho, poderia ser assaltado, pensou o estudante, e ficou ali,
parado, observando. Ele se sentia tão bem cuidando de alguém, seus sonhos e suas
emoções vieram à tona de não se sabe onde, molhando seu rosto. O senhor acordou
enquanto ele enxugava as lágrimas e posou a mão na face dele:
– Porque
está chorando?
– Acho que
é emoção... Tristeza e felicidade... Tudo junto...
Naquele
momento, Samuel sorria e chorava ao mesmo tempo. O senhor se endireitou, ainda
tocando no rosto dele e se aproximou. O rapaz estava parado, deixando as
lágrimas rolarem. Olhou para mão do sujeito e viu uma aliança dourada em seu
dedo:
– É melhor
você voltar para a sua família... – seu tom era triste.
O homem se
recompôs, olhou para a rua e viu seu ônibus vindo, dando sinal antes que ele
passasse direto. O ônibus parou e, assim que subiu, voltou-se para o estudante:
– Meu nome
é Conrado...
– Meu nome
é... – as portas se fecharam. O motorista não havia notado que o senhor estava
falando e partiu abruptamente. – Samuel...
O estudante
ficou esperando o ônibus sozinho, naquela noite fria e chuvosa. Até se lembrar
de algo...
...
Na manhã
seguinte, Conrado acordou diferente, sentia algo novo dentro de si, uma
felicidade que nunca tinha sentido antes. Levantou-se alegre, dando bom dia
para todos, como se tivesse tido o melhor de todos os sonhos. Ele saiu de casa
adiantado, nem ligava para o emprego chato do escritório que sempre lhe estressava
por causa da incompetência de seus colegas que deixavam tudo nas mãos dele.
Aquele dia era diferente, o sono que tivera naquela noite restituíra
completamente a sua vontade de viver.
No trabalho, estava esbanjando
dedicação, não sentia a mesma chateação de sempre. Nada o incomodava:
– O que é isso Conrado?! Nunca te
vi assim?– perguntou um colega enquanto eles almoçavam.
– Hahaha... O que uma noite bem
dormida não faz?!
– Verdade! Não tenho dormido bem.
Acontece tanta coisa nessa cidade, tanto assassinato... Você já viu o jornal da
tarde? – Conrado não notou a capa e pegou o jornal sem olhar pra ele.
– Você me empresta? Quero ler
mais tarde, estou cheio de ideias na cabeça... O escritório poderia ser
reformado, o que acha?
– Você que sabe senhor avoado.
Depois a gente se fala! – já estava no fim do horário de almoço e eles se
despediram.
De volta ao escritório, ele olhou
pela janela e avistou aquele mesmo ponto de ônibus, se lembrou do rapaz e
pensou consigo mesmo: “Deve ser isso! Preciso contar pra ele quando nos
encontrarmos hoje!”.
...
No mesmo horário após o
expediente, ele foi para o ponto de ônibus. Sentando-se no mesmo lugar, notou
algo estranho, o rapaz não estava lá:
– Mas, ele sempre chega antes de
mim! – Conrado resolveu esperar, queria contar o grande dia que estava tendo,
compartilhar com o rapaz o que estava sentindo.
Vários minutos depois. Nada. O
ônibus do estudante passou e Conrado teve uma ideia. Fez sinal para o ônibus e
perguntou ao motorista:
– Quando passa o ultimo ônibus
dessa linha? Tem um rapaz que sempre pega ele nesse horário e...
– Este é o ultimo, não tem mais
ônibus nessa linha até de manhã! – o motorista fechou a porta e partiu vendo
que o homem não subiria, para terminar logo o trabalho e ir dormir.
Conrado sentiu seu coração
apertar, havia alguma coisa errada. Ele fez o rapaz perder o último ônibus e
algo pode ter acontecido com ele. Sua mente se enchia de ideias obscuras,
deixando-o pálido e apático.
O ônibus dele chegou, ele fez
sinal e entrou. Lembrou-se de ter pegado o jornal da tarde que o amigo lhe dera
e tentou lê-lo para se acalmar. Na capa, ele viu algo que o deixou congelado.
Em letras garrafais, Conrado leu a triste notícia:
– Estudante de arquitetura é
morto ao tentar voltar pra casa tarde da noite...
...
Nenhum comentário:
Postar um comentário