Orgulho e Preconceito
Separados,
eles caminharam por lados diferentes. O acampamento foi desfeito aos poucos,
enquanto Dimios e Ferus observavam o trabalho ‘leve’ dos subordinados do
açougueiro Monaro. O jovem castelar tentou puxar uma das estacas que ainda
permaneciam no chão como uma demonstração de força, exibindo-se para o
parceiro. O ato falhou inevitavelmente, constrangendo-o. Um dos serviçais se
aproximou e sem o menor esforço arrancou a estaca, derrubando Ferus. Dimios
pouco ligou para aquilo:
– Vamos? –
e partiram.
Ferus
recebeu um par de botas que estava sobrando, elas eram grandes demais para os
seus pés, mas poderiam ser bem amarradas para ficarem fixas, ou quase isso.
Pelo menos ele poderia caminhar em meio à zona de lixo sem se preocupar com
machucados. A sensação de usar um calçado depois de tanto tempo descalço era
estranha, como se você passasse abruptamente do selvagem para o refinado.
Bobagens aparentes que passaram pela mente dele naquele momento.
Vaik e
Elians estavam sendo carregados pelos serviçais enquanto dormiam. Eles não
poderiam ficar com os castelares e aproveitaram a carona para descansar. O
irmão menor, com pouco sono, observava o irmão mais velho com os olhos
apertados, sorrindo para ele. Vaik, como se visse o irmão mesmo de olhos
fechados, sorriu de volta. Elians logo adormeceu.
...
Dimios,
desconfiado, permanecia com um olhar de suspeita sobre Monaro. Ele sabia que
não podia confiar nele, o próprio açougueiro lhe dissera isso. Porém, havia
mais, era uma outra preocupação. Por mais que ele soubesse ficar sério e se
concentrar nos objetivos, algo o estava insistentemente preocupando-o. Ferus,
com ares infantis por causa da alegria de estar usando as botas novas,
perguntou ao parceiro o que havia com ele:
– Nada...
São meus instintos que estão inquietos. O perigo está próximo de mim e não
consigo me controlar. – respondeu Dimios.
– Nossa!
Desse jeito seu cérebro vai virar fumaça! – Ferus sorriu gentilmente.
– Me diga
uma coisa, Ferus. Você não achou estranho quando viu Monaro?
– Hun...
Acho que não, ele me parece normal. Por quê?
– A
impressão de que não posso confiar nele está latejando na minha cabeça... Ele é
um monstro! Um canibal! Um ser perigoso que pode nos matar a qualquer momento!
– Não acho
isso. Daqui posso ver perfeitamente a tatuagem fantasma dele. Ele escolheu um
escudo com um círculo, símbolo dos defensores da paz.
– E o que
significa isso?
– Ah...
Achei que soubesse. O escudo com um círculo é um símbolo antigo, dos primeiros
séculos da Ordem dos Senhores de Castelo. Quando a Ordem fundou uma subsede em
um planeta pacífico, um dos moradores ficou tão horrorizado com algumas das
histórias contadas pelos castelares que decidiu ele mesmo provar que poderia
levar uma vida de missões em plenitude com o multiverso, sem nunca usar de
violência. Seu lema era: “Heróis não matam”. Ele figura entre os mais destemidos
Senhores de Castelo... – Ferus ficou com uma expressão de dúvida e interrompeu
o que estava falando.
– E qual
era o nome dele? – perguntou Dimios, ainda sem saber sobre o assunto.
– Ninguém
sabe...
– Por quê?
Ele não era um dos grandes castelares de sua época?
– É que
poucos sabem sobre o seu fim... Aparentemente esse castelar se corrompeu em uma
das missões e foi expulso da Ordem, como sendo alguém amaldiçoado e incapaz de
pregar a paz... – Ferus tentou se lembrar de mais alguma coisa. – Reza a lenda
que ele ainda está vivo e persegue Senhores de Castelo justo no momento em que
eles precisam tomar uma decisão extremamente difícil que pode salvar o
multiverso, mas que também pode macular a Ordem...
Dimios
parou de andar por um segundo, lembrando da difícil decisão que precisava
tomar.
– Heh... É
só uma lenda que contam na academia quando os guerrins se juntam para acampar
durante a noite, a luz de uma fogueira.
– Sim, deve
ser...
– Hei! –
gritou Monaro chamando-lhes a atenção. – Venha para cá! Não fiquem muito atrás!
– Certo! –
respondeu Dimios. Curioso, ele perguntou a Ferus sobre o significado de sua
tatuagem.
– Eu
preferi a musashi... – respondeu o jovem castelar. – Ela simboliza a Ordem dos Senhores de Castelo, ela é tudo
pra mim, já que não tenho família...
– Você
também? – Ferus estava com cara de surpreso, tinha algo em comum com o senhor concentração.
– No meu caso, eu previ que meus pais iriam morrer...
– ... –
Ferus ficou em silêncio, sentindo por si mesmo o que deveria ser aquilo.
– Quando eu
tinha cinco anos, uma grande fera invadiu a nossa pequena casa e atacou os meus
pais. Eu vi a morte diante mim... Um dos vizinhos era lutador de artes marciais
e derrotou sozinho aquela grande besta. Só com os punhos! Não tive dúvidas, eu
precisava ser um lutador também e proteger os que estavam próximos de mim. Esse
foi um passo que inevitavelmente me tornaria um Senhor de Castelo...
– Por isso
o símbolo de punho fechado da sua tatuagem... Que bom saber! – Ferus sorriu,
sabia que aquele era um momento em que os dois estavam finalmente se tornando
parceiros.
...
A caminhada
foi longa. O acampamento andou por vários dias e finalmente chegaram a um
povoado, ou o que restava dele. Diferente das construções urbanas da Irmandade
Cósmica, aquele lugar parecia mais uma pequena vila do interior. O
prolongamento das ruas de terra batida era grande, algo em torno de alguns
quilômetros e, para alegria de Dimios e Ferus, havia várias pessoas ali. Sua
aparência era saudável e receberam o açougueiro de braços abertos. Na mesma
noite, fizeram uma festa e comemoraram. Todos cantavam: “A terra está seca; Os
mares estão secos; mas os nossos corações estão alegres! Alegremo-nos nela, que
nos provê o que precisamos! Viva a árvore de mil olhos!”
O jovem
castelar se divertia, dançando junto com aquelas pessoas. Não havia sucos
coloridos, nem carnes sendo assadas, de churrascos preparados com mordomias,
mas se comia e bebia aos montes, fartando-se de frutas de poupas secas colhidas
no pé e água vinda de um riacho que descia o alto da montanha próxima ao
povoado.
A música
parou, subitamente, ao mesmo tempo em que todos ficaram entorpecidos, cessando
seus movimentos completamente. Ferus, que observava a paralisação atentamente,
sentia um vento muito frio soprar e lhe causar cala-frios. Foi correndo avisar
Dimios, que cuidava do sono das crianças. A porta estava trancada e o jovem
castelar batia nela desesperadamente:
– Dimios!
Abre a porta! Dimios! Tem algo errado aqui! Dimios! – por um longo tempo, não
houve resposta. – Dimios!!!
– Nossa,
que sono... O que está acontecendo aqui? – a porta foi batida uma última vez.
Dimios
abriu a porta e se deparou com uma enorme aranha peluda com cabeça de mulher.
Seus olhos eram negros como os de Monaro e em sua boca Ferus estava preso em
uma rede de teia:
– Dimios!
Socorro! – a aranha se virou e correu com suas ágeis oito patas rumo à montanha
escondida nas nuvens.
Dimios
sentia o seu corpo ser tomado por um torpor que lhe roubava as forças, sentindo
uma tremenda sonolência. A mulher-aranha partiu sem demora, ignorando a presença
do Senhor de Castelo. Ele a viu uma última vez e caiu no sono.
...
– Dimios,
acorde!
– Ahn? O
que está acontecendo? – ele sentia uma forte ressaca. – Que dor!
– Acorde
logo homem! A Árvore de Mil Olhos vai matar Ferus! – o ziniano despertou no susto.
– Vaik?
Você está melhor? – sua cabeça latejava muito, mas tinha consciência do que
havia acontecido.
– Vamos
logo!
– Vocês vão
ficar...
– Mas...
–
Escondam-se...
E partiu
sem demoras, trancando a porta.
– O que
vamos fazer irmãozão? – perguntou Elians.
– Vamos ter
que ir com ele...
Na penumbra
da pequena casa, um rosto medonho na parede olhava para as crianças, evidenciando
sua ânsia de fome...
...
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