Dormência
“Eu odeio as pessoas ricas, odeio de verdade! Elas são
malditas, orgulhosas de seus feitos pelo próximo, se esquecendo deles alguns
segundos depois. Em todos estes anos que estive “dormindo”, eu não estava… Via
as pessoas ao meu redor tramando umas contra as outras, chegando a matar para
conseguir esse maldito negócio chamado dinheiro. E tudo para quê? Se gastariam
tudo em seus próprios enterros! A única coisa de que não me arrependo é de
ainda continuar vivo…”
Codinome: BREATH
As duas senhoras da alta sociedade conversavam entre si:
— Como pode acontecer isso com ele? E tão novo?
— Pois é… E sabe o que dizem?
— O quê? Conte-me!
— Que ele foi vitima de envenenamento!
— Meu deus!
…
Todos
olhavam para o jovem BREATH enquanto ele permanecia inerte no seu quarto no
hospital das clínicas. O veredicto do médico fora aterrador para a pobre mãe
(ao menos era o que parecia), quando este disse:
— Ele entrou em estado de coma e pode nunca mais
acordar.
Rapidamente
o pai, que chegara a pouco do trabalho, disse a esposa:
— Querida, o que faremos? — A mulher estava congelada
em pensamentos que assustaria qualquer mãe normal.
— O que você acha de escondermos ele?
— O que está dizendo? Ficaste louca?
— Não! A ideia é perfeita! Poderíamos criar o filho da
empregada que tem a mesma idade que ele, apresentá-lo para a sociedade,
enquanto ele ficaria em casa aos cuidados de alguma enfermeira muito bem paga…
Por
mais estranho que pareça, o marido aceitou calado a proposta da esposa. Eles
fizeram tudo direitinho. Nenhum fotógrafo ou jornalista sensacionalista
perceberia o acontecido. A empregada até pensou em negar que fizessem isso com
o filho, mas a possibilidade de ter um filho na alta sociedade, bem cuidado,
tendo do bom e do melhor lhe subiu a cabeça e cedeu aos patrões. Logo, a capa
que estaria estampada nos jornais seria a do filho do grande casal Borgia das indústrias
farmacêuticas completamente recuperado. Um plano muito bem arquitetado, diga-se
de passagem.
Os
anos se passavam e o garotinho BREATH ia crescendo e se tornando um rapaz
enquanto “dormia” em sua cama de luxo num quarto secreto da mansão Borgia. Na
época do acontecido ele tinha apenas dois anos. Agora, mais de dez anos
passados, já no ano de 2010, BREATH teria quase quatorze anos. Ele via tudo
acontecendo em sua casa. Tudo! Pois ninguém sabia que conseguia se projetar
para fora do corpo e assimilar o que acontecia ao seu redor melhor do que
conseguiria se estivesse acordado. Para o azar dele…
A
família Borgia não é a melhor família do mundo, disso pode-se ter certeza. No
entanto, a perfeição e a humildade estão muito longe de serem conquistadas.
Fato é que muitas vezes o senhor Borgia trazia prostitutas à própria casa,
enquanto a senhora Borgia era uma sádica que maltratava horrivelmente os
empregados, chegando a pisar em suas cabeças com seu sapato de salto agulha.
Dizem que alguns já morreram desse jeito, mas, como foram tirados da miséria
completa, negligenciam suas vidas pela migalha de cada dia, é o que dizem…
As
tramas que esse casal diabólico maquina, não são apenas dentro de casa, são
para fora também! Muitas vezes se ouviu dizer nos jornais: “Escândalo na
família Borgia, senhor Borgia é indiciado por fraude.” Ou então: “Família Borgia
mantém negócios com traficantes do PCC.” Enfim, eles literalmente vendem “remedinhos”
no mercado do tráfico. E, claro, nada disso nunca foi provado, por causa da
velha incompetência brasileira ao se deixar vender por alguns milhares de
dólares ou então ao permitir que seres corruptos subam ao poder. Como não
poderia deixar de ser, sempre mostrando que são uma família correta e digna,
com um filho muito especial e dedicado, um verdadeiro gênio, deva-se dizer…
BREATH
via tudo, BREATH sabia de tudo, volto a repetir. Uma vez, seu pai, não querendo
ser pego com uma prostituta pela esposa. Escondeu-se no quarto do filho
enquanto a enfermeira não chegava para verificar como BREATH estava – na
verdade estava bebendo alguma coisa na adega. O senhor Borgia, um tanto afoito,
começou ali mesmo. Ele, como animal que é, sempre fazia aquilo com muita força,
talvez fosse uma maneira de bater em algo para aliviar a raiva reprimida. O
fato é que, daquela vez, algo tinha dado errado. Quem sabe fosse realmente a
força do individuo ou a fraqueza daquela pobre moça… Mas o óbito fora
inevitável. A desova do corpo não fora difícil, o problema é que desde então a
imagem do filho na lhe saia da cabeça. Ele pensava e ria consigo mesmo:
— Ele não pode ver nada, ele não sabe de nada…
A
senhora Borgia não ficava atrás. Seus castigos aos empregados não eram nada
bonitos de se ver, principalmente se o marido não estava em casa. Mas o seu
principal alvo era o suposto filho que, por causa da idade, nem percebeu a
diferença quando passou a dormir num quarto distante do da verdadeira mãe. Aliás,
a empregada sumiu misteriosamente depois de gritar com a patroa quando esta
bateu violentamente em seu filho por ele ter quebrado sem querer um vaso
caríssimo. Aquela mulher não tolera crianças…
Os
Borgia sempre davam do bom e do melhor para o filho substituto, ele ganhava
presentes quase todo dia, pode-se dizer. Ele até que era bem tratado. Mas, não
se engane, o tímido garoto não era bem tratado pelos pais. Na verdade, quem
cuidava dele eram os empregados, quem comprava os presentes era a secretária do
senhor Borgia. Seus “pais”, dificilmente o viam, uma ou outra vez apareciam em
casa e falavam com o garoto. Outras vezes era usado para aparecer em festas
como se fosse o troféu da família perfeita. Uma das poucas palavras que disseram
a ele foi: “Nunca seja um sem nome como aqueles mendigos na rua”. Isso, para
uma criança em desenvolvimento foi quase um choque, um pouco irrelevante, já
que ele tinha um nome, mas em seu coração ele sabia que o significado daquilo
era muito mais profundo.
Certa
vez, o senhor Borgia, depois de ver o “filho” dormindo, entrou e saiu do quarto
do filho verdadeiro sorrateiramente, sem fazer barulho. Na verdade, o
substituto fingia estar dormindo e conseguiu ver o pai entrando e saindo daquele
lugar secreto. Provavelmente, por ser um garoto curioso, entrou logo em seguida
a saída do pai. Lá encontrou BREATH e, desconcertado com a cena, sentiu pena do
garoto. Não entendeu o que os seus pais faziam com uma criança igual a ele dentro
de casa. Mas, sentiu que o conhecia, talvez de seus sonhos…
A
partir daí, o garoto passou a visitar BREATH com frequência, contando suas
histórias na escola, suas brincadeiras com os empregados quando os pais saiam,
contava seus sonhos, que parecia que o conhecia e que uma vaga lembrança
incerta dizia que eles eram irmãos, um devaneio seu por causa do sentimento que
alimentava pelo “garoto do quarto secreto”. Posteriormente, ele iria conhecer a
enfermeira e se amigar com ela, para que ela contasse quem era o menino. Não
perguntou diretamente. Esperou que ela se encontrasse bêbada como sempre fazia
na ausência dos patrões… Chegou perto, lhe serviu mais um pouco, ouviu os
soluços e finalmente perguntou:
— Quem é o garoto de quem você cuida? — Completamente
bêbada, ela respondeu:
— É você! Oras! Não é você que está… que está…
(soluços) em coma?
— Como assim? — Ficando assustado.
— É… (soluços) Quando você tinha dois anos… você
entrou misteriosamente… (soluços) em coma… Então eu fui com… (soluços) tratada
para cuidar de você escondido do mundo todo! O mundo todo! Ueba! — Ela fazia
gestos esquisitos, iguais aos de pinguços quando tentam falar com alguém. — Ah…
tem mais uma coisa (soluços) uma empregada… me disse uma vez que o filho dela
seria muito rico. Sabe como é… eu duvidei, chamei ela na chincha, e disse:
“Duvido!” E ela… (soluços) me disse que o filho dela era você! Mas eu tô
cuidando de você naquele quarto, não tô? (soluços) Como é que pode?
— …
O
garoto não entendeu nada, mas pensou um pouco e encontrou a resposta desse
enigma, correndo até o quarto de BREATH. Chegando lá, esbaforido, olhou BREATH
atentamente, lágrimas rolavam por seu rosto enquanto dizia a si mesmo: “Não
pode ser, não pode ser! Eu não sou um sem nome!” Num impulso egoísta, desligou
os aparelhos que mantinham BREATH vivo. Se recostou na parede, escorregando ao
chão e encolhendo-se em posição fetal, abraçando as pernas. Ficou ali parado,
na esperança de que ele ainda fosse o filho de seus pais, de que ele ainda tivesse
família, de que ele ainda tivesse algum nome… Sem querer, acabou dormindo.
O
sonho daquela hora fora diferente dos demais, ele podia ver claramente tudo o
que estava acontecendo. Alguém o abraçou fortemente por trás, ele pensou ser
sua mãe… alguma mãe que o amava. Olhou e viu o verdadeiro BREATH, de pé ao seu
lado. O garoto sem nome congelou. BREATH disse algumas palavras inaudíveis como
em qualquer sonho e o garoto acordou, dando de cara com o senhor Borgia que o
via ali. Tentou se levantar e explicar, mas foi pego pelo colarinho e arrastado
a força até o seu próprio quarto. Lá, foi jogado na cama e trancado a chave.
Passou a noite toda temendo o que aconteceria na manhã seguinte.
Durante
a noite, a casa foi invadida. Não eram policiais, nem ladrões, nem a máfia
querendo ajustar contas. Aquelas pessoas eram diferentes. O garoto sem nome
ouvia os barulhos que as pessoas faziam com muito medo, escondendo-se debaixo
das cobertas. Ouviu a porta ser destrancada e alguém entrando. Molhou a cama
sem querer. De súbito, lembrou-se que amanhã era seu 14º aniversário. Ele chorava
muito e, quando puxaram as cobertas, desmaiou.
Em
seus sonhos, via algo magnífico, um lugar cheio de plantas e árvores, com um
santuário gigante no centro. Parecia o centro de uma grande praça. Olhando para
cima, viu o nome ARCADIA. Lembrava-se desse nome dos livros que estudava, de
vez em quando, quando era obrigado. ARCADIA significava um lugar de paz, um
paraíso onde, no entanto, a morte chega. Pensara que talvez fosse o lugar onde
morreria, pois não tinha mais ideia do que seria sua vida dali pra frente…
De
dentro do templo, estava saindo alguém. O garoto se escondeu atrás dos
arbustos. O ser que se apresentava então falou:
— Não se esconda, eu sei que está aí!
— Vá embora, eu sou ninguém!
— Ora, que mentiroso! Eu sei quem você é! — Percebendo
o achado, o garoto saiu de seu esconderijo lentamente.
— Então me diga, quem eu sou? — BREATH se aproximou,
era ele quem estava ali.
— Vamos, venha cá, não vou te morder. — O garoto foi
se aproximando.
— Por favor, me diga quem eu sou! — BREATH chegou mais
perto e o abraçou novamente, com muito carinho. O garoto tentou fugir, não
conseguindo, começou a chorar.
— Eu já te disse antes e repito agora. Você é o meu
meio-irmão, seu codinome é SHY. — Sim, SHY, agora ele sabia quem era e, sabendo
disso, olhou o irmão nos olhos por um instante. Depois o abraçou forte, sem, no
entanto, parar de chorar.
— Calma, está tudo bem agora. Eu vou cuidar de você. —
SHY se acalmou, soltando o irmão. Estava um pouco envergonhado, não sabia o que
dizer. Então BREATH disse:
— Vamos entrar? Os membros da Drugs estão nos
esperando…