sexta-feira, 27 de abril de 2012

Devil's Drink - 4# Shot

            A brisa leve ele sentia... Vivo ele estava, tinha certeza. No meio do vazio ele estava, passo após passo, tentando encontrar nas estátuas sem rosto algo familiar. Devastação era o nome do lugar, cheio de seres inertes presos por algum motivo pecaminoso, esperando o tempo certo para se redimir. Não, não era o inferno. Não se ouve nada ali, apenas aquela brisa leve que aparece de vez em quando. Sem seres vivos, apenas estátuas. Porque ele estava ali? Ele também se perguntava...
            Ao longe ele avistou o Totem, um dos guardiões que esperam pacientemente durante toda a eternidade apenas para serem úteis quando necessário, podendo passar milhares de anos sem se mover um único milímetro. “Os Totens são seres estranhos...”, pensava ele, “...pra quê ficar parado o tempo todo?” Realmente, a existência dos Totens é um dos enigmas do universo. Não se sabe quando foram criados, sabe se apenas que estão lá, esperando, esperando o momento certo para defenderem os tesouros que guardam: os limites da realidade. São eles que estão lá para garantir que as funções universais não se modifiquem e permaneçam do jeito que foram criadas. Aquelas figuras bizarras também não possuem rosto, aparentemente possuem uma máscara metálica, em geral dourada, fendida no meio. Algum antigo disse que se deveria temer que o dia em que um Totem relevar seu rosto, nada foi feito no universo para ir contra a vontade do Totem. Chega se a dizer que por trás da máscara está escondido o próprio vazio – tal qual a falta de perspectiva do que entre lá dentro, pois nunca mais será visto na eternidade. Os Totens são feitos para gerar medo...
            Continuando a caminhada, ele procurava por algo em especial, algo que há muito tempo haviam lhe roubado... Ou teria ele mesmo perdido? Ele não sabia. Também não sabia como era o que procurava, apenas estava procurando. Só isso.
            Um som se fez em meio a tudo aquilo: uma voz doce, uma flauta e algum instrumento de corda. Algo bonito contrastando com o desolamento do local, cinza e sem vida. Andou alguns passos, o som estava ficando mais alto. Continuo e viu que realmente ele não estava só, encontrara um inspirador de sonhos, um dos mestres da ordem. A nova criatura que se apresentava tinha três cabeças, cada uma voltada para uma direção; tinha seis braços, dois para cada respectiva cabeça. A cabeça da direita tocava uma flauta de bambu, a cabeça da esquerda tocava um shamisen e a cabeça do meio cantava como uma donzela pura, gesticulando com as mãos gestos delicados: “Vida, viva, a vida... Toda a natureza se alegra, pois está viva”, era a canção que entoava. Sua pele era azulada e brilhante, seu corpo adornado de finas jóias douradas, com uma ou outra pedra preciosa. O andarilho se aproximou para ouvir mais atentamente a bela música. O inspirador de sonhos abriu os olhos, parou sua música e sorriu:
            –Quem és viajante, porque vieste tão longe? – Seu tom era gentil e convidativo.
            –Meu nome é En’hain, busco por algo que perdi. Não sei bem o que é... Você não teria encontrado algo assim, teria?
            –Não há nada aqui além do que você está vendo... Como podes procurar por algo que não sabe o que é? Como vais saber onde está? Pode ser qualquer coisa!
            –Digamos apenas que procuro algo como a sua música. Senão for pedir demais, gostaria que voltasse a tocar.
            –Gostaste de minha música?
            –Oh, sim, é bonita. Eu quase consigo sonhar só de ouvi-la!
            –Pois é exatamente isso que ela é, um sonho. Sou um inspirador de sonhos e toco para que estas estátuas amarguradas possam repensar suas ações passadas enquanto estão aqui.
            –Sim, entendo. Seu trabalho é realmente muito primoroso!
            –Vou voltar a tocar... – E assim se fez, o som repercutiu novamente por toda a Devastação.
As notas doces eram tão belas que fariam o mais insensível dos seres ser preenchido por uma efusão de emoções que inevitavelmente o fariam chorar. No entanto, En’hain estava inerte, sem sensação nenhuma. O inspirador de sonhos percebeu e se indignou: “Quem no universo é capaz de ir contra a beleza de minha música?”, pensava ele. A flauta e o shamisen fizeram um barulho de desafinamento e pararam. O inspirador voltou a falar com En’hain:
–O que acontece contigo? Toquei minhas melhores notas somente para ti e não se emocionaste nem um pouco?!
–Não me entenda mal, por favor. É que acabo de encontrar o que procuro.
–E então, o que é? Deve ser algo tão divino quanto a minha música, imagino...
–... – En’hain permaneceu calado.
–Vamos, diga-me? Perdeste a fala?
En’hain não fez som nenhum. Não se moveu. De seu rosto começaram a ser derramadas suas lágrimas de metal liquido. O inspirador se espantou com aquilo, ainda não tinha visto nenhuma lágrima de metal em sua vasta existência:
–Que surpresa! Não esperava ver estas lágrimas. Diga-me então, o que és viajante? O que decidiste ser?
–... – Novamente, sem palavras.
            –Tens algo de errado?
            De repente um grande estrondo se fez. Uma, duas, três vezes, na terceira todas as estátuas se quebraram. O inspirador de sonhos ficou confuso. Tentou tocar novamente a sua música para repor a ordem, as notas estavam todas desafinadas. Sua voz havia sumido. Procurou pelo viajante e não mais o encontrou. Olhou para o grande Totem e se assustou:
            –Não pode ser! – Disseram as três cabeças dessa vez.
            O Totem estava se movendo! Isso significava que algo estava muito errado. O inspirador tentou fugir, mas suas pernas estavam presas ao chão por um metal líquido! Então a criatura de um quilometro de altura começou a andar e andava em direção ao inspirador. Um som dissonante se fez e sua máscara começou a abrir. O inspirador estava apavorado, isso significava que ele seria engolido! Silêncio...
...
            En’hain acordou. Novamente aquele sonho. Aquele mesmo sonho onde um Mestre da Ordem encontra seu fim. Era impossível entender aquilo. Tudo apontava para um anuncio terrível... Ou seria algo do passado? Só sabia que seu coração estava batendo forte, sua respiração estava ofegante e teria mais um dia de trabalho na Toca dos Gatos pela frente. Talvez o trabalho o ajudasse a esquecer aquilo...

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