A brisa
leve ele sentia... Vivo ele estava, tinha certeza. No meio do vazio ele estava,
passo após passo, tentando encontrar nas estátuas sem rosto algo familiar.
Devastação era o nome do lugar, cheio de seres inertes presos por algum motivo
pecaminoso, esperando o tempo certo para se redimir. Não, não era o inferno.
Não se ouve nada ali, apenas aquela brisa leve que aparece de vez em quando. Sem
seres vivos, apenas estátuas. Porque ele estava ali? Ele também se
perguntava...
Ao longe
ele avistou o Totem, um dos guardiões que esperam pacientemente durante toda a
eternidade apenas para serem úteis quando necessário, podendo passar milhares
de anos sem se mover um único milímetro. “Os Totens são seres estranhos...”,
pensava ele, “...pra quê ficar parado o tempo todo?” Realmente, a existência
dos Totens é um dos enigmas do universo. Não se sabe quando foram criados, sabe
se apenas que estão lá, esperando, esperando o momento certo para defenderem os
tesouros que guardam: os limites da realidade. São eles que estão lá para
garantir que as funções universais não se modifiquem e permaneçam do jeito que
foram criadas. Aquelas figuras bizarras também não possuem rosto, aparentemente
possuem uma máscara metálica, em geral dourada, fendida no meio. Algum antigo
disse que se deveria temer que o dia em que um Totem relevar seu rosto, nada
foi feito no universo para ir contra a vontade do Totem. Chega se a dizer que
por trás da máscara está escondido o próprio vazio – tal qual a falta de
perspectiva do que entre lá dentro, pois nunca mais será visto na eternidade. Os
Totens são feitos para gerar medo...
Continuando
a caminhada, ele procurava por algo em especial, algo que há muito tempo haviam
lhe roubado... Ou teria ele mesmo perdido? Ele não sabia. Também não sabia como
era o que procurava, apenas estava procurando. Só isso.
Um som se
fez em meio a tudo aquilo: uma voz doce, uma flauta e algum instrumento de
corda. Algo bonito contrastando com o desolamento do local, cinza e sem vida.
Andou alguns passos, o som estava ficando mais alto. Continuo e viu que
realmente ele não estava só, encontrara um inspirador de sonhos, um dos mestres
da ordem. A nova criatura que se apresentava tinha três cabeças, cada uma
voltada para uma direção; tinha seis braços, dois para cada respectiva cabeça.
A cabeça da direita tocava uma flauta de bambu, a cabeça da esquerda tocava um
shamisen e a cabeça do meio cantava como uma donzela pura, gesticulando com as
mãos gestos delicados: “Vida, viva, a vida... Toda a natureza se alegra, pois
está viva”, era a canção que entoava. Sua pele era azulada e brilhante, seu
corpo adornado de finas jóias douradas, com uma ou outra pedra preciosa. O
andarilho se aproximou para ouvir mais atentamente a bela música. O inspirador
de sonhos abriu os olhos, parou sua música e sorriu:
–Quem és
viajante, porque vieste tão longe? – Seu tom era gentil e convidativo.
–Meu nome é
En’hain, busco por algo que perdi. Não sei bem o que é... Você não teria
encontrado algo assim, teria?
–Não há
nada aqui além do que você está vendo... Como podes procurar por algo que não
sabe o que é? Como vais saber onde está? Pode ser qualquer coisa!
–Digamos apenas
que procuro algo como a sua música. Senão for pedir demais, gostaria que
voltasse a tocar.
–Gostaste
de minha música?
–Oh, sim, é
bonita. Eu quase consigo sonhar só de ouvi-la!
–Pois é
exatamente isso que ela é, um sonho. Sou um inspirador de sonhos e toco para
que estas estátuas amarguradas possam repensar suas ações passadas enquanto
estão aqui.
–Sim,
entendo. Seu trabalho é realmente muito primoroso!
–Vou voltar
a tocar... – E assim se fez, o som repercutiu novamente por toda a Devastação.
As notas doces eram tão belas que
fariam o mais insensível dos seres ser preenchido por uma efusão de emoções que
inevitavelmente o fariam chorar. No entanto, En’hain estava inerte, sem
sensação nenhuma. O inspirador de sonhos percebeu e se indignou: “Quem no
universo é capaz de ir contra a beleza de minha música?”, pensava ele. A flauta
e o shamisen fizeram um barulho de desafinamento e pararam. O inspirador voltou
a falar com En’hain:
–O que acontece contigo? Toquei
minhas melhores notas somente para ti e não se emocionaste nem um pouco?!
–Não me entenda mal, por favor. É
que acabo de encontrar o que procuro.
–E então, o que é? Deve ser algo
tão divino quanto a minha música, imagino...
–... – En’hain permaneceu calado.
–Vamos, diga-me? Perdeste a fala?
En’hain não fez som nenhum. Não
se moveu. De seu rosto começaram a ser derramadas suas lágrimas de metal
liquido. O inspirador se espantou com aquilo, ainda não tinha visto nenhuma
lágrima de metal em sua vasta existência:
–Que surpresa! Não esperava ver
estas lágrimas. Diga-me então, o que és viajante? O que decidiste ser?
–... – Novamente, sem palavras.
–Tens algo
de errado?
De repente um
grande estrondo se fez. Uma, duas, três vezes, na terceira todas as estátuas se
quebraram. O inspirador de sonhos ficou confuso. Tentou tocar novamente a sua
música para repor a ordem, as notas estavam todas desafinadas. Sua voz havia
sumido. Procurou pelo viajante e não mais o encontrou. Olhou para o grande
Totem e se assustou:
–Não pode
ser! – Disseram as três cabeças dessa vez.
O Totem
estava se movendo! Isso significava que algo estava muito errado. O inspirador
tentou fugir, mas suas pernas estavam presas ao chão por um metal líquido!
Então a criatura de um quilometro de altura começou a andar e andava em direção
ao inspirador. Um som dissonante se fez e sua máscara começou a abrir. O
inspirador estava apavorado, isso significava que ele seria engolido!
Silêncio...
...
En’hain
acordou. Novamente aquele sonho. Aquele mesmo sonho onde um Mestre da Ordem
encontra seu fim. Era impossível entender aquilo. Tudo apontava para um anuncio
terrível... Ou seria algo do passado? Só sabia que seu coração estava batendo
forte, sua respiração estava ofegante e teria mais um dia de trabalho na Toca
dos Gatos pela frente. Talvez o trabalho o ajudasse a esquecer aquilo...
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