Contradição
Ferus
estava naquele quarto frio, imaginando o que a senhora estava fazendo e decidiu
se cobrir com o pedaço de pano que estava em suas pernas e falar diretamente
com ela. Ele deu alguns passos para perto da porta e viu pela fresta a senhora
conversando com alguém, um homem um pouco mais alto que ele usando uma máscara
de gás, com pele num tom acinzentando nas partes em que se podia ver e
demonstrava estar exaltado, gesticulando vigorosamente. A língua que eles
falavam era diferente da língua comum empregada pelos Senhores de Castelo,
porém era possível ver que por suas expressões que aquilo era uma discussão. A
senhora chegou até a se ajoelhar, implorando por algo, talvez pedindo para que
aquele homem não fosse a algum lugar. Num gesto violento, ele lhe deu um tapa
no rosto derrubando a senhora no chão. A idosa chorava em desespero e engolia a
situação amargamente. O homem pegou um objeto eletrônico que estava ligado e
emitindo sons, e saiu pela porta sem dar mais satisfações. Ferus sentiu algo
entalar na sua garganta e saiu do quarto para ajudar a senhora a se levantar:
– Tudo bem?
– Ferus tentava ser gentil, oferecendo-lhe a mão.
– Estou...
As dores que sinto são do meu espírito – a senhora lhe deu a mão velha e
enrugada, e se levantou. – Aquele era o meu filho, ele é drogado e não tem como
pagar as dívidas. Ele levou o meu rádio de ondas... – seus olhos queriam se
encher de lágrimas, mas eram forçosamente seguradas pela força que ela tirava
não sabia de onde.
–
Diga-me... – Ferus e a senhora sentaram a uma pequena mesa feita de pedaços de
máquinas diferentes, com apenas duas cadeiras de madeira horrivelmente mal
feitas. – Você conhece a língua dos Senhores de Castelo?
– É uma
longa história... – as lembranças deixaram a face da senhora pesada.
– Tenho
muito tempo, fale a vontade. – Ferus sorria, tentando alegrá-la.
– Este
planeta é a escória do território pertencente à Irmandade Cósmica e creio não
ser o único. Eu, meus pais, meus avós, meus bisavós... Todos nós nascemos nesse
mundo morto, sem esperança de ver novamente o céu limpo e estrelado que os
antepassados dizem existir além dessas nuvens grossas. Quando eu era menina, eu
me encantava por essas histórias de mundos bonitos e coloridos. Perdia horas
conversando com as pessoas que diziam qualquer besteira que fosse, inventada ou
verdadeira, e que me contasse mais sobre as maravilhas da existência. Um dia,
aquele rádio caiu dos carros voadores falando sozinho, como eu era jovem, me
assustei, mas a curiosidade me fez ficar ouvindo e descobri que era aquilo que
eu procurava...
– Aquele
era um rádio do Informe do Multiverso, estou certo?
– É assim
que se chama aquela rádio? – perguntou ela curiosa e apreensiva. – Eu aprendi
essa língua de tanto ficar ouvindo ela constantemente e nem sei se estou
falando direito...
– Não se
preocupe. Você está falando perfeitamente. – Ferus sorria sentindo um
calorzinho no peito, um contentamento que nunca sentira antes. – Continue, por
favor.
– Perdoe-me
por ser inconveniente, você é um Senhor de Castelo?
– Heh...
Bem... – Ferus não sabia se falava a verdade a senhora ou se mentia para alguém
que precisava dele. Decidiu mentir, se a Irmandade Cósmica voltasse os olhos
para ele, a senhora não seria a única a ser prejudicada. “O melhor é manter a discrição”,
pensou ele. – Não... Mas já ouvi muito dessa rádio também!
– ... – a
senhora suspirou por um momento, em sinal de nostalgia misturada com
desapontamento. – As pessoas me diziam que eu estava louca... Que só eu
conseguia ouvir aquele rádio falando...
– O rádio
de ondas específicas é assim mesmo, ele só funciona com determinadas faixas de
ondas e emite sons audíveis apenas para alguns, para que a Informação seja
cifrada para quem não pertence ao território da Ordem dos Senhores de Castelo.
– a senhora teve dificuldade em entender a explicação, sem se importar em
perguntar o que aquilo queria dizer. – É normal que isso aconteça.
– Minha
vida foi difícil, criança. Já não é fácil viver neste mundo e ainda por cima
ser conhecida como louca me fez viver afastada do resto das pessoas...
– Você tem
um filho... Onde está o seu marido?
– O que é
isso? – a senhora desconhecia essa palavra.
– Eh, bem,
a pessoa com quem você teve... mantém! Isso, mantém relações conjugais.
– Não tive
marido... – a senhora estava envergonhada e tentava achar forças para ser
franca. Encontrando, foi direta. – Fui estuprada...
– ... –
Ferus se calou e baixou a cabeça. Agora, quem estava com os olhos úmidos era
ele.
– Meu nome
é Dinha... Você ainda não disse o seu criança. – a senhora tentava mudar de
assunto.
– Meu nome
é Ferus, sou um armeiro. Minha vida é fazer armas e engenhocas. – o jovem
castelar estava encabulado em dizer aquilo, passando a mão atrás da cabeça.
– Você
concerta coisas? Muito do que cai do céu está praticamente bom, só não sabemos
como concertar. – Dinha foi até um alçapão no chão e puxou-o, abrindo uma
passagem para o porão.
Ferus
estava apreensivo, nunca teve que lidar com pessoas estranhas daquela forma,
principalmente agora que ele havia se lembrado que não estava com o seu
cilindro e suas ferramentas. A velha senhora já subia de volta para a sala
trazendo um amontoado de coisas, trazendo um sorriso no rosto:
– Sempre
quis saber para que serve isso... – Ferus olhava tudo atentamente, montando o
quebra-cabeça em sua mente.
– Já sei!
Isso vai aqui, aquilo vai ali... – a montagem era rápida, apesar de faltarem
algumas peças. – Hun...
– Algum
problema? – a senhora estava animada com aquilo.
– Você viu
o meu cilindro? É um negócio desse tamanho, prateado com uma alça comprida... –
Ferus tentava demonstrar como era o objeto fazendo gesto para ser mais bem
compreendido.
– Sinto
muito, os trapeiros levaram tudo. Só não tiraram os seus órgãos porque se
assustaram comigo...
– ...! –
Ferus sentia que as coisas naquele planeta não eram, definitivamente, normais.
– Isso complica as coisas... Eu preciso soldar aqui e ali, e também... estou
morrendo de frio! – ele tremia, sentindo um vento que via por debaixo da porta.
– Ah!
Desculpe-me! Roupas são caras por aqui, mal tenho o que vestir... Se bem que...
– a senhora foi para o quarto e voltou trazendo um macacão prateado. – Era do
meu filho, mas ele não usa mais por sentir que está apertado. Não tenho
calçados, ele os vendeu anteontem para comprar mais drogas.
– Obrigado.
Você deve ser a melhor mãe do mundo... – Ferus tentava elogiar, meio sem saber
se deveria dizer.
– Meu filho
não vai voltar... – finalmente as lágrimas escorreram pelo seu rosto. – Como
mãe eu sei que o perdi no momento em que as drogas tomaram conta dele. – Dinha
foi para o quarto, chorar escondida.
– ... –
Ferus tentava agir conforme o seu coração lhe pedia. – Eu tenho que concertar
essas coisas!
O castelar se vestiu e foi para o
porão da casa, talvez tivesse mais sorte. O que ele viu o surpreendera deveras
após ligar as luzes. Com os olhos fascinados, Ferus contemplava um galpão
enorme abarrotado de máquinas diversas de todos os tamanhos:
– Pelos reis de Newho! Isso deve
ser mais que o suficiente!
...
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